quinta-feira, 5 de maio de 2016

A Marcha em Palavras

Entendo que é contraditório, mas a melhor maneira de descrever a Marcha em palavras é declarar que não há palavras para descrever a Marcha. As palavras aliás, como todo o resto, são quase inúteis para entender o que aconteceu aqui.

Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz dizia que outro idioma precisaria ser inventado caso a guerra durasse mais. Nenhum idioma humano possui palavras para descrever esse terrível campo. Como já mencionei antes no blog, a palavra "fome" que usamos quando queremos repetir o prato ou quando desejamos sobremesa, não descreve o que sente quem não come há uma semana e cuja última refeição foi um pedaço de pão sem sabor.

Diante de tais obstáculos, espero que o leitor possa perceber a alegria e a tristeza de participar da marcha. Que possa perceber a contraditória beleza deste local e deste dia no campo, com imagens tão inspiradoras (às vezes indescritivelmente belas) quanto complexas. Não posso deixar de dizer que me encanto muitíssimo com a maneira como sol reflete sobre os jovens sorrisos que se movimentam com tanta vida pelo campo. A grama, o sol, a chuva, a alegria de saber que há futuro e que estamos aqui - tudo isso é dolorosamente belo. Insuportavelmente belo.  

Sei que cada lugar que visitamos hoje, cada passo, cada cantinho, teve um significado diferente para cada um. Começo, portanto, apenas descrevendo nosso trajeto e explicando um pouco sobre os lugares que visitamos. Mais tarde, tentarei compartilhar alguns textos para reflexão.

Além de fazer a Marcha hoje, visitamos o museu de Auschwitz-Birkenau. São dezenas de pavilhões com objetos, documentos, explicações e, principalmente, vivências. Fomos entender como funcionava essa terrível máquina de morte. Vimos câmaras de gás, locais de "experiências médicas" bizarras, objetos pessoais (inclusive cabelos). Ouvimos algumas das histórias.

Há muitos agravantes macabros para o que ocorreu aqui. O primeiro é a mentira. Os nazistas, até os últimos momentos, enganavam cruelmente suas vítimas. Diziam-lhe que seria um banho, que deveriam lembra-se bem o número do cabide onde deixaram suas roupas para voltar. O segundo é a sistemática metódica. A eficiência na máquina de morte, como se não se tratasse aqui de vidas humanas. O terceiro é a desumanização - este sim tão terrível e tão real que precisa ser constantemente combatido, ainda hoje. Principalmente hoje. Essa é uma responsabilidade nossa - combater a desumanização do outro, daquele que é diferente.

Tudo o que aconteceu aqui só teve lugar porque os nazistas lograram desumanizar os judeus - tanto na forma de viver como na forma de viver. Ao chegar no campo, eram despidos fisicamente e psicologicamente. Arrancavam-lhes as roupas e os cabelos, mas também seus nomes e suas famílias. Tudo o que faz de uma pessoa um ser humano. Pois todo mundo tem um nome. Pobres, ricos, feios e bonitos: todos tem nome. Até animais de estimação, já que são queridos e importantes, possuem nomes próprios. O judeu em Auschwitz não possuía mais do que um número. E não podia ter roupas, cabelos, pertences pessoais ou identidade. Resignar-se a ser um zumbi sem expressão era a forma de sobreviver e de lutar e pouco diferia da forma de render-se e se entregar.

Os nazistas queriam sua morte, mas antes tentaram tirar-lhes a humanidade. Até mesmo depois da morte, os corpos eram tratados como objetos e explorados sempre que pudessem render aos nazistas qualquer valia - dos cabelos às obturações dentárias.

Conhecemos a "Sauna" onde os judeus eram recebidos e vimos a impressionante quantidade de fotos confiscadas, com milhares de rostos familiares desconhecidos. Foram trazidas porque importantes para quem as trouxe. Filhos arriscaram suas vidas para esconder sob a roupa a única imagem que possuía de seus pais. Maridos que guardavam consigo a única recordação de sua esposa de paradeiro ignorado. Essas foram arrancadas pelos oficiais nazistas como se nada significassem - pois suas vidas nada poderiam significar mais do que números.

Vimos Talitot - cada um pertenceu a um pai de família. Vimos óculos, próteses, brinquedos e malas. Coisas que temos em nossas vidas e que fazem parte de nossas identidades - tudo fora confiscado. Só um ser humano tem pertences pessoais.

Caminhamos então pelo campo até o local do início da Marcha. Vimos os outros grupos aos poucos chegar e se colocar em oposição. Em poucos minutos, um mar de capas azuis cobria o campo e começou a marchar. A onda se movimentou por cerca de dois quilômetros até chegar a Birkenau - mais momentos de fortes e contraditórias emoções.

Após a Marcha, uma bonita cerimônia teve lugar num palco armado no campo de Birkenau. (É preciso esclarecer que Aushwitz-Birkenau é um complexo gigantesco de cerca de 191 hectares. A Marcha vai desde Auschwitz I até o campo de Auschwitz II, conhecido como Birkenau). Foi em Birkenau que a maior parte doas assassinatos ocorreram. Nesse lugar hoje, ouvimos sobreviventes, mensagens de chefes de Estado e orações - inclusive um minian de minchá.

Caminhamos muito, aprendemos muito e nos cansamos bastante. Mas saímos com uma sensação muito boa, de dever cumprido - sensação de que não somos mais os mesmos.    

Um comentário:

  1. Momentos como estes vão marcar nossos filhos para sempre e tenho certeza reforçar o lado humano, seu caráter e tornar nosso judaísmo ainda mais forte !!!

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